Há, no mundo, três bilhões de mulheres. Só oito são top models." Esse slogan da marca Body Shop, que foi surpreendentemente veiculado junto com uma espécie de Barbie loura e gorda, nos diz que existem dois corpos de mulher: um, real, cotidiano e comum à maioria; outro, idealizado e raro - um modelo.
Mas seriam só dois corpos, da mulher? Ou poderíamos subdividir nosso corpo em tantos outros corpos, um para cada intenção do olhar que nos observa? Unas e fragmentadas, somos corpo-sedução, corpo-sexualidade, corpo-maternidade, corpo-estética, corpo-saúde, corpo-religião, se é que não estou esquecendo algum. E cada corpo de que somos investidas assume o poder sobre os outros, assume o poder sobre nós.
"Nosso corpo nos pertence" gritamos um dia voltadas para o corpo-maternidade, sem perceber que o grito, visto no todo, era mais um desejo do que uma afirmação. Nosso corpo, aquilo que acreditamos ser nosso mais concreto bem individual, não nos pertence de fato, e nunca nos pertenceu. É uma criação coletiva, moldada pelos interesses, pelas necessidades e pelos conhecimentos da comunidade. É uma entidade que, nascida para nos servir, cresce para servir também aos outros, para encaixar-se, o mais harmoniosamente possível, no intrincado mosaico que constitui a sociedade. E é justamente na harmonia desse encaixe, mais do que na individualidade sonhada, que reside nosso bem-estar.
O preço da maçã
Eva tinha, pelo menos na imaginação dos que a retrataram, um bom corpo, um tanto fofo talvez, mas sem que ela soubesse, posto que não havia nenhuma outra mulher com quem se comparar. Vivia feliz com Adão no relax do Paraíso Terrestre. O sexo, a maternidade, o trabalho, a saúde não faziam parte das suas preocupações.
Preocupações, aliás, não tinha de espécie alguma. Não precisava nem mesmo preocupar-se em seduzir Adão ou em mantê-lo. Eva nem sequer menstruava. Nada de cólicas ou TPM. Seu corpo era puramente natural, como uma palmeira. Até comer a maçã (algo me diz que o gesto só lhe foi tributado porque não deu certo. Tivesse sido um sucesso, atri-buíam a Adão). Então Deus a castigou, não apenas introduzindo no seu corpo as dores e a servidão do parto, mas tomando dela esse corpo e entregando-o a quantos ela viesse a procriar povoando o mundo.
Como o Visconde Medardo de Terralba dividido ao meio por um tiro de canhão no romance de Italo Calvino, assim também fomos imediatamente divididas em duas pela maldição divina. De um lado a santa, do outro a pecadora. Quantas restrições para o corpo da santa, que não podia mostrar-se, que não podia ter prazer, que existia só para parir e amamentar. Quanto obrigatório prazer para o corpo da pecadora, que devia exibir-se, vender-se, evitar filhos, até eventualmente pegar uma boa doença e abandonar qualquer dessas atividades para sempre.
Mas assim como nos partiram, também nos emendavam. A virgindade foi a cola que durante séculos fez de nós um só corpo, urna do sagrado. Virgens destinadas desde a infância aos templos ou aos conventos, fomos a proteção da sociedade. "Em todos os lares cristãos é necessário que haja uma virgem, pois a salvação da casa inteira está nessa virgem. E quando a ira recair sobre toda a cidade, não recairá sobre a casa em que houver uma virgem", escreveu Eusébio de Emesa no século III.
Do nosso corpo dispunham, para o bem e para o mal. No nosso corpo mandavam, para a abundância ou para a contenção: que paríssemos muitos filhos quando a expansão era necessária, que deixássemos de pari-los quando a expansão era excessiva. O corpo que havia sido de Eva não era mais natural como uma palmeira, havia-se transformado num corpo social e a sociedade - dos homens - ditava as regras para ele.
Ainda ditam, mas de maneira mais sutil. Tivemos primeiro que libertar nosso pensamento. Depois foi a palavra. E só então pudemos começar a libertar o corpo. Foi um longo processo.
Do inferno ao paraíso
Hoje, nos Estados Unidos, calcula-se que a cada 100 pessoas, quatro chegarão aos 100 anos. Posso estar errando o dado, mas o que me interessa é que a meta dos 100 anos está entrando na normalidade. No século II d.C., auge do Império Romano, só quatro cidadãos, em cada 100, passavam dos 50. E a expectativa média de vida era de 25 anos. Em breve, portanto, teremos multiplicado nossa vida por três ou, se quisermos ser mais modestos, por dois.
Olhando os afrescos romanos daquele tempo poderíamos crer que nosso corpo continua o mesmo. Seria um equívoco. Mudou sobretudo nossa relação com ele.
Empurramos a morte para mais longe. Depois começamos a empurrar para longe a velhice. Agora, tendo começado por ficar mais tempo velhos, estamos querendo ficar mais tempo jovens. Eternamente, se possível. E nessa corrida pela manutenção da juventude e da beleza as mulheres são as mais empenhadas.
Um bom negócio, sem dúvida. Fornecemos beleza a longo prazo para o deleite de alheios olhos e pagamos por ela, movimentando o mercado com mais de US$ 20 bilhões anuais para a indústria de cosméticos, 33 bilhões para a indústria das dietas, e 300 milhões para a cirurgia estética. Engasgado com isso ficaria São Cipriano, arcebispo de Carthoye, que em tempos bem distantes escreveu: "Cuidado, Deus pode vos lançar ao inferno por não vos reconhecer sob as máscaras de pintura."
Deus não nos lançaria ao inferno. Ao inferno nos lançamos nós mesmas, sorridentes. Ao inferno das academias, dos regimes, da corrida, da bicicleta, do alongamento, dos halteres. Suamos mais do que se queimadas pelas chamas, para conquistar o paraíso da forma física, das nádegas rígidas, das coxas sem celulite, do corpinho sarado. Ao contrário dos ascetas gregos para quem "muitos exercí-cios, muita comida e bebida, muita evacuação dos intestinos e muita copulação" eram "sinal de falta de refinamento", consideramos falta de refinamento fazer pouco ou nenhum exercício. E embora concordemos com o resto, é em grande parte pensando na "copulação" que mantemos um olho no espelho e outro na balança.
Depois de tanta cisão, a maioria das mulheres conseguiu emendar a santa e a pecadora. Nosso santo corpinho quer se exibir, e para isso o tratamos. A mãe de família conquistou o direito de usar biquíni, embora perdendo com isso o direito aos peitos caídos. Em parte graças a nossas hoje já antigas reivindicações, o mundo descobriu aquilo que de repente nos parece um ovo de Colombo, que saúde e sexo andam juntos, para ambos os gêneros em igual medida. Que o corpo é nosso primeiro instrumento de alegria. E que amar é a forma mais gratificante de estar jovem.
Mas seriam só dois corpos, da mulher? Ou poderíamos subdividir nosso corpo em tantos outros corpos, um para cada intenção do olhar que nos observa? Unas e fragmentadas, somos corpo-sedução, corpo-sexualidade, corpo-maternidade, corpo-estética, corpo-saúde, corpo-religião, se é que não estou esquecendo algum. E cada corpo de que somos investidas assume o poder sobre os outros, assume o poder sobre nós.
"Nosso corpo nos pertence" gritamos um dia voltadas para o corpo-maternidade, sem perceber que o grito, visto no todo, era mais um desejo do que uma afirmação. Nosso corpo, aquilo que acreditamos ser nosso mais concreto bem individual, não nos pertence de fato, e nunca nos pertenceu. É uma criação coletiva, moldada pelos interesses, pelas necessidades e pelos conhecimentos da comunidade. É uma entidade que, nascida para nos servir, cresce para servir também aos outros, para encaixar-se, o mais harmoniosamente possível, no intrincado mosaico que constitui a sociedade. E é justamente na harmonia desse encaixe, mais do que na individualidade sonhada, que reside nosso bem-estar.
O preço da maçã
Eva tinha, pelo menos na imaginação dos que a retrataram, um bom corpo, um tanto fofo talvez, mas sem que ela soubesse, posto que não havia nenhuma outra mulher com quem se comparar. Vivia feliz com Adão no relax do Paraíso Terrestre. O sexo, a maternidade, o trabalho, a saúde não faziam parte das suas preocupações.
Preocupações, aliás, não tinha de espécie alguma. Não precisava nem mesmo preocupar-se em seduzir Adão ou em mantê-lo. Eva nem sequer menstruava. Nada de cólicas ou TPM. Seu corpo era puramente natural, como uma palmeira. Até comer a maçã (algo me diz que o gesto só lhe foi tributado porque não deu certo. Tivesse sido um sucesso, atri-buíam a Adão). Então Deus a castigou, não apenas introduzindo no seu corpo as dores e a servidão do parto, mas tomando dela esse corpo e entregando-o a quantos ela viesse a procriar povoando o mundo.
Como o Visconde Medardo de Terralba dividido ao meio por um tiro de canhão no romance de Italo Calvino, assim também fomos imediatamente divididas em duas pela maldição divina. De um lado a santa, do outro a pecadora. Quantas restrições para o corpo da santa, que não podia mostrar-se, que não podia ter prazer, que existia só para parir e amamentar. Quanto obrigatório prazer para o corpo da pecadora, que devia exibir-se, vender-se, evitar filhos, até eventualmente pegar uma boa doença e abandonar qualquer dessas atividades para sempre.
Mas assim como nos partiram, também nos emendavam. A virgindade foi a cola que durante séculos fez de nós um só corpo, urna do sagrado. Virgens destinadas desde a infância aos templos ou aos conventos, fomos a proteção da sociedade. "Em todos os lares cristãos é necessário que haja uma virgem, pois a salvação da casa inteira está nessa virgem. E quando a ira recair sobre toda a cidade, não recairá sobre a casa em que houver uma virgem", escreveu Eusébio de Emesa no século III.
Do nosso corpo dispunham, para o bem e para o mal. No nosso corpo mandavam, para a abundância ou para a contenção: que paríssemos muitos filhos quando a expansão era necessária, que deixássemos de pari-los quando a expansão era excessiva. O corpo que havia sido de Eva não era mais natural como uma palmeira, havia-se transformado num corpo social e a sociedade - dos homens - ditava as regras para ele.
Ainda ditam, mas de maneira mais sutil. Tivemos primeiro que libertar nosso pensamento. Depois foi a palavra. E só então pudemos começar a libertar o corpo. Foi um longo processo.
Do inferno ao paraíso
Hoje, nos Estados Unidos, calcula-se que a cada 100 pessoas, quatro chegarão aos 100 anos. Posso estar errando o dado, mas o que me interessa é que a meta dos 100 anos está entrando na normalidade. No século II d.C., auge do Império Romano, só quatro cidadãos, em cada 100, passavam dos 50. E a expectativa média de vida era de 25 anos. Em breve, portanto, teremos multiplicado nossa vida por três ou, se quisermos ser mais modestos, por dois.
Olhando os afrescos romanos daquele tempo poderíamos crer que nosso corpo continua o mesmo. Seria um equívoco. Mudou sobretudo nossa relação com ele.
Empurramos a morte para mais longe. Depois começamos a empurrar para longe a velhice. Agora, tendo começado por ficar mais tempo velhos, estamos querendo ficar mais tempo jovens. Eternamente, se possível. E nessa corrida pela manutenção da juventude e da beleza as mulheres são as mais empenhadas.
Um bom negócio, sem dúvida. Fornecemos beleza a longo prazo para o deleite de alheios olhos e pagamos por ela, movimentando o mercado com mais de US$ 20 bilhões anuais para a indústria de cosméticos, 33 bilhões para a indústria das dietas, e 300 milhões para a cirurgia estética. Engasgado com isso ficaria São Cipriano, arcebispo de Carthoye, que em tempos bem distantes escreveu: "Cuidado, Deus pode vos lançar ao inferno por não vos reconhecer sob as máscaras de pintura."
Deus não nos lançaria ao inferno. Ao inferno nos lançamos nós mesmas, sorridentes. Ao inferno das academias, dos regimes, da corrida, da bicicleta, do alongamento, dos halteres. Suamos mais do que se queimadas pelas chamas, para conquistar o paraíso da forma física, das nádegas rígidas, das coxas sem celulite, do corpinho sarado. Ao contrário dos ascetas gregos para quem "muitos exercí-cios, muita comida e bebida, muita evacuação dos intestinos e muita copulação" eram "sinal de falta de refinamento", consideramos falta de refinamento fazer pouco ou nenhum exercício. E embora concordemos com o resto, é em grande parte pensando na "copulação" que mantemos um olho no espelho e outro na balança.
Depois de tanta cisão, a maioria das mulheres conseguiu emendar a santa e a pecadora. Nosso santo corpinho quer se exibir, e para isso o tratamos. A mãe de família conquistou o direito de usar biquíni, embora perdendo com isso o direito aos peitos caídos. Em parte graças a nossas hoje já antigas reivindicações, o mundo descobriu aquilo que de repente nos parece um ovo de Colombo, que saúde e sexo andam juntos, para ambos os gêneros em igual medida. Que o corpo é nosso primeiro instrumento de alegria. E que amar é a forma mais gratificante de estar jovem.
por Marina Colasanti
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"Que as Deusas estejam sempre a tecer e os Deuses estejam ao lado do nosso caminhar"