sexta-feira, 12 de junho de 2009

O papel da maternidade no processo de individuação feminino

por Coordenação Espaço Anima
Resumo
Utilizando a Psicologia Analítica como embasamento teórico, este artigo tem por objeto situar a experiência da maternidade (biológica ou não), como uma possibilidade de avanço no processo de individuação feminino. Para que, transformação, crescimento e maturação sejam possíveis, é fundamental que a mulher tenha consciência das mudanças internas que acompanham este processo e vivencie a experiência de forma positiva, o que implica na aceitação da introversão, crise e ambigüidade que envolvem este duplo nascimento: o da mãe e o do filho. A experiência da maternidade será abordada sob o aspecto simbólico, como um rito de passagem da “mulher filha” para a “mulher mãe”, quando se faz necessário o sacrifício da filha para que nasça a mãe. Assim, o processo de individuação será abordado como um movimento em direção à totalidade, através de uma integração de partes conscientes e inconscientes da personalidade feminina.


Palavras-chave: Psicologia Analítica; Maternidade; Individuação.


1.Introdução

Este artigo busca articular a ligação entre as reais dificuldades da maternidade e suas raízes psíquicas mais profundas, colocando esta experiência num contexto subjetivo e considerando-a como parte de um processo de expansão da consciência.
A maternidade posiciona a mulher diante de uma nova situação que implica em adaptação e reposicionamento de conduta; esse processo é lento e gradual exigindo da mulher capacidade de dar sentido a esta vivência , através de um processo elaborativo que resulta em auto conhecimento e crescimento.
A forma de vivenciar a maternidade difere pela individualidade de cada mulher . Aqui serão tratados alguns aspectos emocionais comuns a mulheres que se identificam com o papel de mãe e relacionam-se com a maternidade de forma positiva , não sendo consideradas a depressão pós-parto e a psicose puerperal.
O objetivo geral do presente trabalho será discutir as implicações da transformação da mulher de filha para a mãe, focando a experiência da maternidade como uma possibilidade de avanço no processo de individuação feminino. Assim, será considerada a primeira experiência da mulher diante da maternidade. Apesar das alterações hormonais e a vivência do parto que fazem parte do processo biológico da maternidade, a mãe adotiva experimenta a mesma mudança de identidade e possibilidade de auto conhecimento que a experiência da maternidade oferece e como o presente trabalho pretende abordar a maternidade em seu aspecto simbólico, serão consideradas as mães biológicas e as adotivas.
Este artigo será elaborado através de revisão literária do tema, focado na Psicologia Analítica.
Os objetivos específicos são: identificar as implicações da mudança de identidade e o arquétipo materno, das sombras da maternidade e da individuação da ” mulher- filha” para “mulher- mãe”.


2. A Mudança de Identidade e o Arquétipo Materno

A maternidade traz mudanças intensas na vida da mulher, principalmente no que concerne à sua identidade, pois o nascimento de um filho implica no nascimento de uma “mãe” para este filho. “A mulher passa por uma mudança simbólica radical em sua consciência de si – mesma ao tornar-se mãe” (Galbach 1995, p. 43). Aqui, a maternidade será focalizada como a passagem da mulher-filha para a mulher-mãe, colocada sob o ponto de vista do sacrifício da filha e a iniciação da mãe, atentando para o conflito psíquico que a mulher experimenta ao abandonar um lugar conhecido para iniciar-se num processo desconhecido que exige uma redefinição de sua identidade pessoal. “Quando ocorre o nascimento e com ele se conclui a transformação da mulher em mãe, põe-se em atividade uma nova constelação arquetípica, a qual remodela a vida da mulher até suas camadas mais profundas” ( Erich Neumann 1995 p.40). A modalidade arquetípica a qual se refere Neumann é o arquétipo materno.
A seguir analisado o conceito de arquétipo definido por Jung para que possamos tratar do arquétipo materno e as implicações deste na maternidade.
Jung considera que o inconsciente não contém somente componentes de ordem pessoal, “mas também impessoal, coletiva, sob a forma de catergorias herdadas, ou arquétipos” (Jung 1997, p.13). Sobre este conceito Jung diz:

“Há tantos arquétipos quanto situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas principalmente apenas forma sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação. Quando ocorre algo na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a moda de uma reação instintiva contra toda razão e vontade, ou produz um conflito de dimensões eventualmente patológicas, isto é, uma neurose“ (Jung, 1976, p.58).

Assim, a maternidade pode ser vista como uma situação típica na vida, em que a mulher é confrontada com o arquétipo materno, o que evoca um determinado tipo de ação e percepção característico. “O arquétipo materno, sendo a matriz da autoconsciência feminina, estrutura a consciência da mulher num eixo próprio seu, feminino, e sua constelação na gravidez e maternidade levam a uma revisão da estruturação matriarcal de sua personalidade” (Galbach 1995,p. 38).
Jung considera que arquétipo materno, como todo arquétipo, possui uma variedade incalculável de aspectos e sobre os traços essenciais deste arquétipo Jung menciona:

Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica da autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal( Jung 1976, p.93).

Daí depreende-se o caráter bivalente do arquétipo materno.
Trataremos inicialmente as implicações do aspecto positivo deste arquétipo na experiência da maternidade, ou seja, os atributos maternais: o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento.
Ao tornar-se responsável pelo bebê, ao cuidá-lo e alimentá-lo, a mulher encontra a possibilidade de cuidar-se e nutrir-se, tornando-se responsável pela vida em si e pela sua própria vida. Para tanto, faz-se necessário o sacrifício da filha, nutrida e protegida, para a iniciação da mãe que nutre e protege, vivenciando simbolicamente uma espécie de morte e renascimento, “o nascimento de um primeiro filho representa “morrer” como jovem e “renascer “ como mãe” (Galbach 1995, p. 82).
Jung ressalta cinco aspectos do renascimento, uma delas é na forma renovativa:
“O renascimento pode ser uma ”renovatio” sem modificações do ser, na medida em que a personalidade renovada não é alterada em sua essência, mas apenas em suas funções, partes da personalidade que podem ser curadas, fortalecidas ou melhoradas” (Jung 1976 , p.120).
Assim, havendo renovação a maternidade possibilitaria o fortalecimento da personalidade feminina.
“O paralelo ao tema da morte e ressureição é o da perda e reencontro” (Jung 1973 , p. 332) .


3. As Sombras da Maternidade


Os traços negativos da bipolaridade do arquétipo materno definido por Jung como “o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e o fatal” ( Jung 1976, p. 92), remetem a mulher ao aspecto sombrio da maternidade.
“O termo sombra refere-se à parte da personalidade que foi reprimida em benefício do ego ideal ( ... ) a sombra representa o inconsciente pessoal” (Whitmon 1998, p.144). A sociedade e a cultura super valorizam o aspecto positivo da maternidade, não considerando a dimensão do feminino e portanto não orientando a mulher para esta iniciação. Este tabu criado em torno da maternidade e as implicações da percepção de seu aspecto sombrio, dificulta a verbalização desta experiência, o que leva as mulheres a não revelarem umas às outras a situação conflitiva que se deparam quando do nascimento de um filho, o que dificulta ainda mais a elaboração do processo.
“Na gestação e no parto, (... ) , algumas mulheres vêem-se às voltas com uma luta dramática entre vida e morte que destrói por completo o velho senso de “estar no controle”, conhecido pelo ego. E com isso elas têm uma iniciação que diz respeito a muito mais do que apenas ter de lidar com um bebe novinho. Elas estão face a face com a mãe como criadora e destruidora (Carlson 1989, p. 143).


4. O Processo de Individuação


Neste trabalho a possibilidade de avanço no processo de individuação será abordado pela via da ampliação da consciência através da introversão experimentada na vivência da maternidade. Este processo de introversão pode possibilitar a integração e harmonização de conteúdos conscientes e inconscientes da psique feminina. “Como mostram muitos exemplos históricos pela introversão o indivíduo é fecundado, entusiasmado, reconcebido e renasce” (Jung 1973,p.368).
A introversão vivenciada no pós parto é decorrente de um rebaixamento do nível mental, como conseqüência da forte emoção experimentada e o cansaço físico que envolve o parto e os cuidados dispensados ao bebê, este rebaixamento do nível mental Jung denomina ”abaissemant”. “O abaissemant pode ser conseqüência de um cansaço físico e psíquico, de doenças somáticas, de emoções e choques violentos, cujo efeito é especialmente deletério sobre a auto segurança da personalidade” ( Jung 1976, p. 125).
Este rebaixamento do nível mental, ou “relaxamento da consciência” (Jung 1976,p.125), experimentado na maternidade, pode ser visto sob dois aspectos: o negativo que põe em risco a personalidade, quando os conteúdos inconscientes assumem forma autônoma, e o positivo que possibilita uma transformação subjetiva através da ampliação da consciência. A transformação da personalidade no sentido da ampliação “é a conscientização de um alargamento que emana de fontes internas” (Jung 1976,p. 126), para tanto a mulher “deve ter dentro de si a capacidade de crescer, senão nem a mais árdua tarefa servi-lhe-á de alguma coisa. No máximo ela o destruirá” (Jung 1976,p.126).
A possibilidade de ampliação da consciência feminina na maternidade está relacionada com a discriminação e percepção de sua participação no processo criativo. “O mistério, o simbólico, é o que transcende a estreiteza da consciência pessoal. Perceber a gravidez e o nascimento como símbolos enriquece e promove crescimento, abrindo o feminino para uma religação com sua base feminina vital mais profunda” (Galbach1995,p.85).
A definição de símbolo feita por Jung, “pode ser resumida como referindo-se à melhor formulação possível de um conteúdo psíquico relativamente desconhecido que não pode ser compreendido pela consciência” (citado em Samuel 1989,p.118)
Essa ampliação da consciência através da integração de conteúdos inconscientes não se trata de uma conscientização verbalizada e racionalizada da vivência da maternidade, ao contrário é algo que acontece em silêncio, para que haja discriminação e percepção.
“Preocupando-se com o aspecto exterior de sua experiência de maternidade a mulher, pode ter vários filhos, várias gestações e mesmo assim, permanecer inconsciente do significado mais profundo do evento que esta ocorrendo nela, que um ato de criação esta ocorrendo através dela (...), por outro lado também uma atitude racional e materialista diante da vida pode apagar qualquer compreensão de um significado mais profundo” .(Gallbach 1995, p.48 )


Gallbach citando Harding diz que é necessário que a mulher realize algo mais que adaptar-se às necessidades da criança , para experimentar o significado da maternidade e tornar-se consciente de si mesma como mulher e como mãe:

“Num plano mais subjetivo, o significado de gestar e dar à luz uma criança é mais profundo que a criança física. Ao entregar seu corpo e seu ser para deixar a vida se criar e ser revivida através dela não se atendo somente às limitações e desconfortos que a gravidez trás, a mulher pode experimentar uma fase totalmente nova de consciência. É como se a mãe mesma fosse reproduzida através da experiência da maternidade e assumisse uma imortalidade simbólica na qual a criança física que ela dá à luz , pode ser um símbolo de um novo Self, recriado através do ato pelo qual ela realizou sua própria natureza. Ao nascimento de um filho externo acompanha-se o nascimento de um filho interno”( Gallbach 1985, p.49).

5. Considerações Finais

A mulher ao vivenciar a experiência da maternidade, encontra no ambiente social um tabu no que diz respeito às sombras que envolvem este processo. Reina ainda, um certo pudor na transmissão oral da experiência , entre as próprias mulheres, inclusive mães e filhas, no que tange ao esclarecimento do aspecto sombrio deste processo.
Se o processo de maternidade é renovação, nada mais natural que se encare o momento do nascimento de um filho como, simultaneamente, morte-vida, dor-júbilo.
Para nascer a mãe, faz-se mister morrer a filha. Ora, morte é dor, é perda. É sair do conforto do modelo conhecido e dominado para o inusitado porque desconhecido.
Necessário, portanto, que a mulher considere as perdas implicadas na mudança de identidade, as sombras que fazem parte da vivência do processo, o caráter bivalente do arquétipo materno, como parte integrante do aspecto simbólico do ato da criação. Elaborando, então, o significado mais profundo da experiência da maternidade
Assim, o avanço no processo de individuação feminino, pela via de ampliação da consciência , através da harmonização.

Artigo de Gisele Sarmento

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